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SALA DE LEITURA

A casa da mãe Joana

 

“Ainda que me abandonem pai e mãe, o Senhor me acolherá.”

— Salmos 27:10

 

Autor: ANTONIO GUEDES ALCOFORADO

 

Mateus era um garotinho abandonado. De aproximadamente um ano de idade, com aparência de seis meses devido a maus-tratos, não caminhava, não sorria, abatido, catarrento. Fora encontrado por Maria, na porta de sua casa, envolto num molambo. Ela não tinha condições financeiras para criá-lo e resolveu repassar a responsabilidade. Maria o levou até uma casa vistosa, bonita, pintada de branco.

 

— Ali podem criá-lo, tenho certeza. — Maria verbalizou baixinho deixando o bebê após tocar a campainha.

 

Maria de longe ficou a esperar que alguém da casa saísse para pegar a criança. Tempos depois uma senhora saiu da casa, viu a criança, segurou em seus braços, leu o bilhetinho que continha o nome Mateus, o mesmo que Maria recebera. Levou para a casa do vizinho, tocou a campainha, correu deixando o pequeno no batente da porta.

 

— Meu Deus, que destino será o deste menino! — Maria disse e continuou a observar, a certa distância.

 

A vizinha fez o mesmo que a senhora anterior. E assim Mateus foi sucessivamente passando de porta em porta.              

 

— Quem pariu Mateus que balance! — Maria ouviu comentário de uma infeliz.

 

— Mas será o Benedito? — Maria falou de longe.

 

Maria resolveu voltar e pegar a criança para si. Ao chegar, o bebê estava nas mãos de uma senhora, que falou ao olhar nos olhos de Maria:

 

— Toma que o filho é teu — disse indignada aquela distinta senhora. — Também, com a mãe que tem o filho não há de ser grande coisa — continuou.

 

— Vocês são todas Maria vai com as outras — disse Maria referindo-se ao passa-passa da criança. — Moro lá onde Judas perdeu as botas, sou doméstica e vou ter que encarar a vida com este guri — resmungou.

 

E seguiu pensando: O pior cego é aquele que não quer ver. Adotar uma criança deixada em sua porta é uma graça de Deus. Essas casas bonitas são pra inglês ver, eles não tem coração. Vou embora daqui antes que eu rode a baiana.

 

Mateus foi salvo pelo gongo. Disposta a pagar o pato e sem papas na língua, Maria pretendia cuidar da criança, para tanto teria que suspender o pagamento de dívidas. O primeiro a receber moratória seria a bodega de seu Manoel, tinha que botar a conta no prego. Era a história de sempre: devo não nego, pago quando puder. Mas não estava disposta a deixar Mateus de porta em porta.

 

— Posso viver eternamente na posição que Napoleão perdeu a guerra, esfregando o chão que os outros pisam. Não ficarei de mãos atadas — falou para o seu Manoel da bodega. — Já comi o pão que o diabo amassou, não cruzarei os braços e em breve lhe pagarei.

 

A baixinha Maria, tamanho não é documento, deixou de ser empreguete na casa daquela bruaca da Dona Remédios, tentou trabalhar como diarista, mas não sobrava tempo para a criança.

 

Os fins justificam os meios, transformou sua casa em pensão, para poder trabalhar em casa e estar com a criança.

 

Em pouco tempo, tinha quatro hóspedes, homens solteiros que não se incomodavam em dividir os quartos daquele imóvel antigo, mal iluminado e sem ventilação, construção do tempo do ronca. O bom era terem carta branca e liberdade de, em consenso e combinando horário, levarem mulheres. As garotas também almoçavam ou jantavam. Tinha estômago de avestruz, a comida era grosseira, feita nas coxas. Um ganho a mais para a dona da casa. Apesar de ser uma bocó, Maria acertou na mosca, conquistou seu lugar ao sol, era uma trabalhadeira da gota serena. Sem mimimi Mateus vivia.

 

Uma das garotas, Jane Piriguete, de tanta habitualidade, passava a maior parte do dia com Maria e a ajudava na casa e com a criança.

 

Fazendo das tripas coração, a dívida junto à bodega logo foi quitada. Seu Manoel, o chato de galochas, não ficou de mãos abanando.

 

Para obter os benefícios sociais governamentais Maria se deu conta de que Mateus precisava de documentos. Fez boca de siri e registrou a criança como seu filho legítimo, irregularmente. Era amor verdadeiro, de mãe coruja.

 

A casa era um balaio de gato e havia permanente bate-boca. Cheia de Zé povinho, uma gandaia só. As garotas falavam pelos cotovelos. Um dos hóspedes era muambeiro xexelento. Outro boçal era o xodó de Maria. O camarada da Jane Piriguete era um burro chucro e a chamava de tchutchuca e cocota, ela se sentia valorizada.

 

O último hospede era um estudante boa pinta sem eira nem beira, que vivia na sofrência e de porre, comia Jane Piriguete com os olhos.

 

Jane encontrava seu amante com a boca na botija. Fazia aquele rebuliço. Era barulho a torto e a direito. O camarada primeiro jurava de pés juntos, chorava lágrimas de crocodilo, não dava certo. Botava as barbas de molho e saía à francesa, bolado. Voltava dava um abraço de tamanduá em Jane e tudo voltava a ser como dantes no quartel de Abrantes.

 

Maria sem entender patavinas virava uma brucutu, chutava o balde, botava a jiripoca pra piar e colocava a bagunça nos eixos, não deixava sua casa ser transformada na casa da mãe Joana, mas já o era. Era vida que segue, sem chorar o leite derramado. 

 

FIM

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